Durante cinco anos de pesquisa diária, para reconstituir a história da imigração de meus ancestrais sardos (sendo representante da segunda geração no Brasil e com DNA 100% estrangeiro), não pude deixar de observar o quanto o registro da história foi relegado a segundo plano ou forçados a esta condição. Não raro, documentos são rasgados, queimados, abandonados e muitos, muitos mesmo, são enterrados sem contar sua história a seus descendentes.
Os imigrantes eram vistos apenas como mão de obra, salvo raras exceções em que vinham com capital para implantar novos negócios na América. Isto a 140 anos atrás, no contexto da monocultura cafeeira e com fazendeiros ávidos pelo lucro, era a realidade. Os relatos que coletei em minhas pesquisas são diversos e bem expressivos, demonstrando a dificuldade na adaptação, o "não pertencimento" à nova terra e condições, a tristeza por não poder retornar as origens, o isolamento e a perda total da identidade.
A Síndrome de Ulisses, ou doença dos imigrantes, é real e ainda faz estragos nos dias de hoje. Estamos falando da segunda e terceira geração de descendentes dos imigrantes sardos. E isto se estende para outros grupos e etnias, porque o Brasil é um país de imigrantes, com a genética e o espiritual ainda sendo trabalhados. Basta verificar o quanto ainda a mídia ocupa deste tema!
" ...É sabido que meu avô rasgou alguns documentos sardos e outros ficaram retidos quando fugiram da Fazenda onde trabalhavam como colonos, mas meu pai não soube onde isto aconteceu..."
"Tentei contato com os principais cartórios, seguindo a trilha dos possíveis parentes de meus avós, mas todos, unanimamente, me informaram que nada havia de registro da minha família naquelas localidades."
Trechos de emails de Lucinha Dettori, em 11 de junho de 2015.
"Meu pai foi um sonho realizado. Queria conhecê-lo desde pequena. Era um homem que gostava de viver sozinho. Ficou feliz de me ver. Era muito preconceituoso, não gostava de pretos, de cristãos, não bebia e nem fumava."
Relato de uma prima, que conheceu seu velho pai sardo, "sistemático por natureza", mas de grande coração. Trecho do livro "A ILHA QUE ATRAVESSOU O MAR."
"Minha mãe vivia em conflitos com a família, não se adaptava a nada, abandonou a família e se entregou ao álcool. Éramos três filhos abandonados, porque meu pai "italiano" tomou seu rumo. Chegou ao ponto que minha mãe suicidou... Não sei dizer qual deles tinha raízes na Sardenha..."
Relato triste de um leitor anônimo, da "A ILHA QUE ATRAVESSOU O MAR".
"...ouvindo sugestões da vizinhança que a “fatalidade” de meu nonno era “contagiosa” (câncer de estômago) e, por ignorância da época, teria esvaziado todo seu guarda-roupa e queimado todos seus pertences no quintal. Tudo que estava no bolso das roupas, inclusive documentos pessoais do meu nonno, viraram cinzas."
Trecho do livro "A ILHA QUE ATRAVESSOU O MAR", sobre os documentos dos ancestrais do Autor.
"Parecia irônico, o "HD" pouco tinha da memória do passado, entrou em conflito com a sopinha de letras e agora deu pane. As primeiras perguntas vieram à mente: Será que existem doenças específicas da imigração? São transmitidas geneticamente a seus descendentes? Teria atravessado o mar, arrastando a crise familiar vivida na Europa? Até onde o trauma do arrependimento de Giuseppe e Maria Annica, repercutiria nos seus descendentes? Se confirmada, quais os sintomas na história familiar? Onde encontrar vestígios de sua manifestação na família? Quais as atitudes da nova geração para evitar que uma padronização comportamental nefasta continue a estigmatizar a família? Que mudanças a segunda geração deve empreender para que envelheça sem somatizar estas heranças genéticas? Chorei copiosamente, desconsolado e só, ao ver meu pai desorientado com os fragmentos de memória, sedado por tarjas pretas..."
Trecho do livro "A ILHA QUE ATRAVESSOU O MAR", sobre a constatação da doença de Alzheimer no pai do Autor da "ILHA QUE ATRAVESSOU O MAR".
Há estudos e teses que analisam a Síndrome dos Imigrantes, que são acessíveis aos leitores e explanadas no livro "A ILHA QUE ATRAVESSOU O MAR". É importante analisar bem os efeitos desastrosos da imigração no país, ainda hoje, sobretudo porque nosso Sistema de Saúde não aborda esta questão prioritária de saúde pública; tornando-se um problema silencioso na nossa sociedade; persistente por décadas.
Jorge Fouad Maalouf, em sua tese de Doutorado em Psicologia Clínica, apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC em 2005, intitulada ― O sofrimento de imigrantes: um estudo clínico sobre os efeitos do desenraizamento no Self ― elucida os efeitos da imigração sobre gerações.
Outro artigo apresentado em 2009 pela portuguesa Dra. Chiara Pussetti, PhD em Antropologia Cultural e Pesquisadora Associada Sénior do Centro de Investigação em Antropologia (CRIA), intitulado ― Identidades em Crise: imigrantes, emoções e saúde mental em Portugal”, define o exato sentimento do imigrante e a falta de percepção dos políticos da época que alimentaram a ―salvação da lavoura‖, um exemplo próximo, vejamos:
"O endurecimento atual das políticas migratórias não favorece em nada a integração, mas antes pelo contrário contribuem para alimentar estereótipos promotores de um clima hostil e de recusa em relação aos estrangeiros. A sua "não colocação social" torna o imigrante num ser simultaneamente invisível e opaco, porque incomodamente presente, intimidativo enquanto símbolo das margens, do que a sociedade tenta excluir e pretende não ver; é o criminoso, o ilícito, o irregular e, portanto, o bode expiatório de qualquer problema social... A psicopatologia identificada no imigrante seria nesta visão o resultado da passagem árdua entre uma cultura e a outra, da falta de integração na sociedade de acolhimento, da crise identitária, da discriminação."
Hoje temos abertura e conhecimento para expor o assunto. Imagine o que passou os imigrantes do século XIX, nossos ancestrais. A maioria enfrentou, remoeu problemas e, por vezes, foi vencido por questões muito maiores daqueles da lida diária. E a genética transmitiu estes sofrimentos às gerações seguintes, que lutaram por adptar-se a "vazios e tristezas existenciais", ao "não pertencimento ao lugar" e, porque não, a práticas suicidas... E a mídia, independente do país e sua evolução social, enfrentam diariamente tais questões.
Por que?! Creio que a resposta é simples e está neste problema social, exposta geneticamente a uma parte sensível e fragelada das novas gerações. E o Brasil não escapa deste cenário, porque substituiu a mão de obra de escravos pela mão de obra de estrangeiros, iludindo-os para um paraíso que nunca existiu; em benefício dos barões do café. Atualmente, uns respondem a este "mal silencioso" com forte saudade no peito, com o trabalho exaustivo, outros com dores físicas, psíquicas e espirituais e outros, no extremo da cegueira, dão cabo da própria vida e de quem estiver ao redor... E mais uma vez, a mídia enxerga como "câncer da sociedade", "anomalias" ou "fatos isolados"; recusando-se enxergar a realidade histórica: somos um país de imigrantes e seus recentes descendentes... SOMOS FRUTOS DE UMA HISTÓRIA... não máquinas, força de trabalho, meros geradores de impostos, mas... seres humanos...
Para os que enfrentam estes dilemas, recomendo que ANALISEM suas árvores genealogicas, sua história, RECUPEREM a memória familiar (senão as enterrarão em breve), se necessário PROCUREM ajuda médica e espiritual, PERDOEM seus ancestrais por erros cometidos, REVERENCIE seus antepassados (gratidão por sua existência), BUSQUE suas raízes e FALE e ENSINE a seus filhos sobre a bravura e determinação de seus antepassados. A cura se dá pelo diálogo e no ambiente familiar. NÃO ESPERE QUE O GOVERNO O FAÇA. Foi o pivô do problema no passado e agora é apenas aquele que lastima, veta, fecha fronteiras, repreende e usa da lei para os infratores; sem aprofundar no problema que ele próprio criou...
SAUDAÇÕES A TODOS OS DESCENDENTES SARDOS, NO TERRITÓRIO BRASILEIRO E NO MUNDO.
KENT'ANNOS!
Do Autor.
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