Vida de pastores
Na noite escura e distante do tempo,
toda percepção é falha e mouca, mas os eventos fortes sobrevivem incólumes e
tornam-se lendas adoráveis. Foi assim na aldeia feudal de Villasalto, no
distante ano de 1240, quando a grande maioria das terras da ilha da Sardenha
pertencia ao Reino de Arborea. A pequena aldeia possuia poucas casas, todas de
pedras e acentuadas por ruas calçadas de pedras, iluminadas por archotes com
óleo vegetal. Sua população não excedia a 500 residentes, que vivia da
rudimentar agricultura, criação de cabras e domesticação de equinos e muares. A
união de famílias fortes e bem articuladas no poder se faz presente neste tempo
distante, como em outras partes do velho mundo. E não foi diferente nesta
aldeia feudal no sul da ilha, incrustrada no meio do mediterrâneo. Giovanni de
Bas Serra, rico banqueiro da época, entregara sua filha Vera Cappai a Mariano
II, Rei da Ilha, unindo duas famílias abastardas que dariam poder e sucessão ao
trono por mais de 300 anos. Com a união das famílias, as “Contas Villasalto Muravera” estavam nas mãos da “potente famiglia Cappai”, estendendo seu
poder das terras altas de Villasalto, na região montanhosa de Gerrei, próximo
ao Pico de Gennargentu até as terras baixas do litoral da antiga Muravera e
atingindo as terras férteis do Rio Flumendosa. O casamento real e o foco no pagamento de impostos iriam alimentar
conspirações, tão afins ao poder. À margem desta história real, o isolamento
geográfico, a escassez de recursos e as doenças palustres dizimavam sem dó,
seja quem for e onde estivesse. Pastores, reis e rainhas desta dinastia, rudes
e valentes, tombariam pela “peste”.
O vento implacável assolava as
oliveiras e plantas silvestres que insistiam em fixar no terreno rochoso,
serpenteadas por odores do alecrim e tomilho que invadia as ruas semidesertas
da aldeia. E dele ecoaria as cantigas dos sinos de cabras distantes, pastejando
desinteressada e ritualmente nos vãos de rochas alvas, como tivesse a ninar os
mais severos pensamentos. E certamente seria um bom condutor da melancolia das Launeddas de alguns pastores, que
cobriria seu turno com o treino ou virtuose de suas flautas. Desta laboriosa
excursão do “giorno di lavoro”,
pastoreando o rebanho de cabras, culminaria no encantamento dos eventuais “Ballo sardo”, quando os universos
masculinos e femininos estariam em efusivas danças na pequena praça. As Launeddas se juntarão aos tambores,
chocalhos e ao canto polifônico dos pastores, que concorriam em busca dos quão
potentes e melodiosos conseguiriam ser. Os homens estarão com suas melhores
roupas de pele, barbas aparadas e bem dispostos ao “vino, formaggio e carni” e as mulheres em exuberantes vestidos
coloridos e lenços bordados nas cabeças. E tudo que o vento leva, haverá sempre
o odor da fumaça de suas fogueiras, ora fazendo o café e ora preparando seus
intermináveis assados de “vittelo,
pecoras, maiales e cinghiale”. Deste ultimo, o vento propaga o som de
fortes estampidos na caça dos javalis, tão comum na densa floresta que
circundava o vale. E toda esta cultura contada pelos ventos, simbolizada pelo
pastoreio, fogueira, caça, launeddas, a dança e o canto, estão contadas nos
afrescos e pinturas rupestres nas “Domus
de Janas”, menires e rochas primitivas. Escapavam-lhes a dispersão
aleatória do vento, enquanto respeitavam os registros nas rochas, como se as
fadas realmente o fizessem.
“Tzio”
saiu cedo, antes do amanhecer na aldeia, para pastorear. O apelido lhe caia
bem, porquanto era o tio solteirão,
livre em suas convicções e grotesco em sua performance alpina. Suas roupas
vinham das peles e lãs de seu rebanho. O calçado rústico e eficiente
acompanhava a polaina de couro escuro, grosseiro e bem curtido, que o protegia
das serpentes mais sorrateiras. A calça, mais que esconder as pernas e as
partes pudicas, protegia de espinhos da severa vegetação. Um saiote de pele é
sobreposto às calças, herança dos antigos sumérios e do império romano,
aumentando-lhe a resistência. Sobrepondo a uma camisa de lã alva, presenteada
pelas artesãs da família, seguia o colete e um turbante de pele, dando-lhe uma
aparência rude e exuberante, impondo profundo respeito. Vestimenta que se
complementava com a longa espingarda, que o acompanhava sempre, juntamente com o
Coltello bem afiado. Após longo e
rigoroso inverno, cuja neve deixou inacessíveis e impróprias várias áreas de
pastejo, Tzio teria que andar por
vários meses com seu rebanho. Não levava nada, a não ser seu conhecimento e
experiência, juntamente com seus irmãos e outros pastores, que se apartariam em
caminhos distintos e equidistantes, guiados pelos ventos e sons. As fortes mulheres
aldeãs, “madonnas e ragazzas”,
estavam de pé para ultima despedida antes de partirem, arremessando da boca
fortes vapores na madrugada gelada, entremeada pelas falas tropeçadas e
confusas, e adiante, dos gritos de despedidas.
Na ausência das mulheres, rodeado de
ovelhas de cabras e poucos víveres, os pastores sobreviveriam ao final do
inverno intenso. Procurariam para suas ovelhas um local com boa pastagem.
Acercariam de suas “pinettas”,
pequenas construções de pedra e cobertura de palhas em pontos estratégicos de
outras temporadas e excursões. Feitas de chão batido e bem calafetadas, era
equipada com um fogão de pedras com chaminé, onde seriam preparadas as
refeições, geralmente composta de carne de caça, aves ou javalis, leite e
queijo e, eventualmente, vinho ou grappa.
Nas “pinettas” ao redor do fogo,
tocando launeddas, cantariam
loucamente, divertiriam com as aventuras do dia, curariam as feridas, jogariam
“morra”, afiariam os coltellos e contariam piadas toscas e
mundanas, longe do cerceamento das mulheres, assim por meses a fio. Da turma
desta temporada, estava Carlo, Giacomo, Salvatore, Giuseppe, Pietro, Francesco,
Giorgio, Efisio, Antônio e Gaspare, num total de dez pastores. O alvo das
chacotas, “scherzo”, era Carlo e
Giorgio. O primeiro ragazzo motivado
pela fase “tropo caldo” de sua
mocidade, sem namorada e sempre cercado de uma cabra em particular. O segundo
inexperiente com a caça, ao esquivar-se de um javali enfurecido, apavorado em
dar cabo do nervoso animal que partira sobre ele, deu um tiro no próprio pé.
Ambos sobreviveram às brincadeiras dos pastores, que se divertiram na lida
árdua e longa do campo. Alguns incidentes como ataque de raposas, ovelha
perdida, cabra envenenada por uma nova erva digerida, ataque de serpente e
tentativa de roubo motivariam as conversas. E toda conversa não deixaria o
grupo tão revoltoso quanto à questão administrativa regional, quando tiveram
que dar uma grande volta com o rebanho cansado para retomar antigo e costumeiro
caminho, devido a uma ponte caída sobre o caudaloso rio.
Com tantos impostos que arrecadam dos
agricultores e criadores, o que fazem pelo “paese”
e o “popolo sardo”, a resposta é simples “una mierda di niente”. Nada produzem, apenas cobram. Não conservam
os caminhos, não controlam as queimadas, não preservam as pontes, não combate
os roubos frequentes nos rebanhos; mas sabem cobrar impostos. Retornando após
meses ao relento, pastoreando e produzindo queijos e carne salgada, os pastores
deveriam destinar parte da produção ou negociações ao feudo, que por sua vez
repassaria parte ao Regno d’Arborea,
numa ida sem volta. Mas havia uma esperança, após o casamento de Vera Cappai,
filha do banqueiro, com o Rei Mariano II, o aragonês valente e poderoso de toda
ilha. A união era promissora e poderia mudar toda história, em favor dos
produtores rurais da pequena Villasalto e fariam uma belíssima história. Tzio trazia dentro de si a ambiguidade
de sua atual postura, mantinha-se solteiro sem maiores preocupações ou
casava-se, tendo que ambicionar-se a partir de então com a produção e os maledettos impostos que tiravam o sono
dos casados. Mas quando pensava em Marianna, seus olhos brilhavam e toda
preocupação era levada pelos ventos, embalada pelos sinos angelicais de um amor
sem igual.
As pastagens alcançadas em onze dias
de caminhada ainda estavam dentro das terras cedidas pelo Reino aos pastores.
Não havia cercas ou marcos, mas a palavra, armas e sardos bravos para
defendê-la. Se não fossem contestadas, poderiam ser usadas sistematicamente
pelos pastores, até que tornassem posse e fossem cedidas pelo Rei, logicamente
à custa de impostos. Mas se por mudança de humor ou preferência do Reino, as
terras de divisa fossem cedidas a outro sem consulta da posse precária,
pendengas seriam criadas e arrastariam por anos em brigas e chumbo. Visto que o
prejuízo material e as mortes não as compensaria, uma das partes se retirava do
pleito. Mas o espírito sardo é renitente e muitas terras foram conquistadas na
valentia. Não obstante, a quantidade de terras media a valentia e o poder de
seu dono. E quanto mais próximas de aldeias, maior valor teria. O fato de
encontrarem a Pinetta de pé,
organizada como deixada em períodos passados, era bom sinal de que não haveria
confrontos ou contestações. Passariam por menires, mas estes não seriam marcos
de posse, porquanto sabiam que eram primitivas manifestações de antigos druidas
à Terra Madre, sábios místicos da
antiguidade que equilibrava a energia do local. Veriam antigos Nuraghes de pedras e beneficiariam até
dos poços d’água com laborioso acabamento lítico, mas estes também foram feitos
milhares de anos atrás por antigas civilizações. Havia respeito dos pastores
por estas obras antigas, jamais retirariam suas pedras para construir suas Pinettas, por mais fácil e perto que
estivessem. Temiam antigas maldições.
E, em meio a estas questões de terra,
um desgarrado macho espetacular e viril reproduzisse com suas cabras, poderia
ser uma benção na melhoria do rebanho ou mesmo uma desgraça, caso o
proprietário a reclamasse. Geralmente, parte da cria seria entregue ao dono,
caso se apresentasse. As cabras eram bem distinguidas no rebanho, com sinos
peculiares a cada dono e artesão; assim como os Coltellos, que uma vez vistos, saberia de que tribo ou região era a
cabra ou pastor. Detalhes nas vestimentas também tinham este papel de
identificação, o que poderia manter afastada uns do outros, dada a belicosidade
e intensa ignorância deste ou daquele grupo. A mudança brusca do clima
mediterrâneo, entre a neve e calor intensos em períodos nem sempre bem
determinados, dava uma característica bipolar a estes grotescos pastores.
Poderia passar do riso à agressão por simples mal entendido, por isto
conversavam pouco com estranhos, como imperativo demonstrar do seu espaço e
território. Mas com todo rigor do clima, constituía um dedicado e bom amigo. E
em silêncio, agachado e observando sistematicamente o rebanho, cortava com seu
inseparável Coltello pedaços de
queijo bem curado e nacos de carne seca, mastigando-o profundamente em vigia
aos próprios pensamentos...
Passados os meses, o que se via ao
longe se assemelhava à visão grotesca da chegada do incrível exército de
náufragos, levados pelo sabor dos ventos de outrora. Barbas imensas, cheiro de
suor, grandes cargas nos baús nos lombos dos burros, o rebanho cabisbaixo e
determinado a chegar à aldeia, os cães a latirem com força encorajada pela
visão da aldeia, os pastores arrastando suas carcaças de cansados, enervados
pelos pensamentos mais infames. Os enamorados na suspeita de que foram
esquecidos e trocados por outrem. Os casados na suspeita de uma traição, depois
de vários meses distantes. E tudo se desfazia, como num passe de mágica, com a
primeira sensação do retorno, a volúpia do olhar, a anca desperta a rebolar na
festa da chegada, o sorriso branco na face castigada pelo sol, os afagos e
beijos desejosos, as crianças chorando de saudades e toda aldeia em festa. A
ansiedade foi recíproca, cada qual cuidando de seus afazeres. A fartura estava
garantida, enquanto os pastores produziam carne e queijos em terras distantes,
as mulheres e crianças cuidavam das casas, teares e pomares. Ambos tinham
histórias para contar, reunidas e compartilhadas com os ventos de Villasalto,
nas terras altas de Gerrei...
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