OS MOINHOS DE
QUIXOTE
O fim de tudo é certamente a vida que
encerra. Assemelha-se ao fim do mundo, o prenúncio da morte para o indivíduo,
um estado completo de solidão na vastidão deste mundo. Morrer é um ato
essencialmente solitário e não precisa ser paciente terminal. Não há desamparo
maior que chegar ao fim da trilha e terminar a vista sobre um grande abismo.
Neste, não há quaisquer vistas que orientem o novo rumo ou mesmo se há nova
chance; se é de fato o fim do caminho ou se ainda teremos forças para
enfrentar. Mas a biologia caminha inversa à sanidade dos melhores planos. E
então, um cinquentenário se encontra frente a frente no desalento do último
enredo; na leitura dos olhares perdidos e minguados dos anciãos recolhidos no
leito dos hospitais. Quantas histórias magníficas deixarão de ser contadas ou,
em muito breve, estarão irremediavelmente dispersadas e esquecidas! Não há
lógica para o arquivista pesquisador ou
ao escriba, na matéria prima lapidada
no tempo e dilapidada pelo próprio senhor tempo. Olho para o abismo e o abismo
olha para mim, buscando uma decifração da vida e morte. Que sentido faz tudo
isto agora? Desejaria conversar francamente com meu pai, hoje com 83 anos, das
descobertas que não tive tempo de relatar, das aventuras que empreendi desde
que saí moleque de casa ou mesmo jogar palavras ao vento no alpendre, como
velhos amigos, pai e filho curtidos pelo tempo. Mas não tive tempo, porque o
Alzheimer chegou primeiro.
A
química da morte superou a química da vida, levando a memória de tudo. O baú da
família carunchou os porquês essenciais da família, aniquilando a identidade
ocultada ou pouco vivida, como que enterrando finalmente nossas raízes
imigrantes. Química da morte, “figli di
puttana”, que arrasta partes importantes de acervo das famílias, expostas
ali à minha frente, como manchas no cérebro numa imagem da ressonância magnética.
O cérebro morre rapidamente, juntamente com as palavras e sua lógica mundana,
como despedida em vida.
-
Como é o nome daquela mulher que fica lá
em casa?!, - Perguntou meu pai, certa vez, no início da doença.
-
É sua esposa meu pai, a minha mãe. O nome dela é Lêda. Não esquece, porque ela
vai ficar brava... – Brinquei, achando graça do inusitado.
E surpreendentemente, zeloso que
deveria ser com os detalhes da paternidade de quatro filhos e a manutenção da
casa, pediu olhando fortuitamente para os lados, como investigando com os olhos
a localização da companheira de tantas décadas.
-
Anota num papel e coloca no meu bolso,
porque não posso esquecer seu nome. – Apressou meu pai em consertar o
terrível lapso, desculpando-se com riso amarelo....
E passado apenas dois anos do trágico
avanço do Alzheimer, minha mãe também ingressou na doença, aos 83 anos. Nunca
minha Certidão de Nascimento sofreu tantas alterações. Não sei se chamo José,
Antônio ou Batista, ora apenas “menino”, mas atendo prontamente qualquer nome
que venha em minha direção. Perdi as forças para corrigir, porque a repetição
do erro é torturante, tanto quanto o fantasma que agora nos ronda. As
argumentações ficaram tênues, sem expressão, como resvaladas para o nada e,
assim, emudeci com eles. Uma semana com meus pais é a pura expressão de parte
decadente de mim. Sou como alicerce da construção carcomida por ondas salobras,
expondo esqueletos nas colunas herdadas, que acreditava serem de aço.
Deparei-me com minhas fragilidades, falhas e ausências. Deveria tê-los incitado
à lógica da vida, ao raciocínio das letras e na dinâmica de novas experiências.
Cuidava de minha profissão e família à medida que a doença se manifestava há
quase 500 km de distância entre cidades, que separa o sul de Minas com a Zona
da Mata mineira. Tenho nos braços hoje sua primeira bisneta, o ícone da
renovação da vida, que jamais reconhecerão. E neste cenário familiar frágil,
encontro com a “química da morte”,
que me leva a digladiar com Planos de Saúde e Ouvidorias apelando-os na “obrigação de fazer”, as drogas “tarja preta” para postergar a vida quase
sem vida e angústia na falta de ambulância para o transporte emergencial. E
para complicar meus pensamentos, uma tragédia de grande extensão há poucos anos
deu novo rumo na história familiar, que ainda enfrentamos. E foi assim que
comecei a pesquisar o Alzheimer e sinto que devo compartilhar singelamente o
que descobri.
Descobri que não existem receitas ou
chás para envelhecer saudável. Também que os traumas e as dores foram feitos
para serem enfrentados, chorados ou compartilhados, a seu tempo, ainda em campo
de batalha. Compreendi finalmente que o homem é um ser social, como foi
enfatizado por tantos filósofos. Não podemos nos isolar, jamais. Que minha
presunção, orgulho ou vaidade não servirá para nada, a não ser distanciar as
pessoas. Por outro lado, a amizade, o sorriso e a caridade rejuvenesce o
coração. Devo respeitar a história e fragilidade do outro, ser amigo. Que nunca
é tarde para aprender qualquer coisa; é preciso reinventar-se. A “solidão dos velhos” pode nos matar. A
sociedade ocidental criou padrões, como a idolatria à juventude e ao corpo
“sarado”, repetindo antigos gregos, criando quase ojeriza àqueles para o qual o
tempo passou. Aprendemos a associar o idoso à doença, problemas e limitações,
peso para a sociedade e a previdência social. Caminhamos para um país velho,
sem estrutura e organização mental para esta realidade. De qualquer forma,
busque o ambiente que lhe agrade e importe com você. Sou agente de minha
realidade. E por toda experiência passada, agradeço a graça de tê-las vivido.
A figura do “zumbi” sem cérebro, não
interessa senão à indústria do cinema ou aos laboratórios farmacêuticos. O ato
de viver é um constante reinventar da vida, longe de ser Zumbi. Não devo
reclamar do que não posso fazer, mas simplesmente fazer. Não posso isolar do
mundo, porque não terei ninguém para compartilhar ou ouvir minhas descobertas.
Vou trabalhar sempre, pois os frutos colhidos pelo meu pai são amargos, por ter
aposentado cedo aos 52 anos e ter trancado num apartamento, com medo de um
mundo violento e perigoso. É inevitável ficar velho, mas quando deixamos de
sonhar e nos isolamos, seja em qualquer idade, iniciamos a própria morte.
Geneticamente carrego o Alzheimer, mas posso mudar isto, aprendendo uma nova
língua, mudando temporariamente para outro país, aprendendo com outra cultura e
forçando o cérebro a novos comandos. Virei vegetariano. Bebo água de nascentes.
Aprecio a natureza. Tenho hoje a idade que meu pai aposentou e não posso seguir
o mesmo padrão comportamental. Não pretendo ser jovem novamente, porque
cronologicamente isto é impossível, mas posso imprimir “juventude” nos meus
dias. Isto significa renovar os pensamentos, rever conceitos e paradigmas e
realizar atividades diferentes. A cada dia, tenho a felicidade e o presente de
recomeçar novos projetos e reinventar ideias. E quando Dom Quixote de La Mancha começar a ver perigosos gigantes nos
moinhos de vento, certamente lembrar-me-ei da resposta de minha sogra “Dona Marta”, numa manhã de domingo, no
quintal de casa, quando perguntei:
- Qual o seu segredo
para envelhecer com saúde?
- Não preocupe com isto!
- Sábias palavras de uma alma caridosa, de quem enfrentou
muitas batalhas, cativa com cantorias e recita trovas aos 88 anos.
_______________________________________________________________ * José Capaz Dutra Cappai, 53 anos, é jornalista, historiador e pesquisador da imigração sarda para o Brasil. Autor do Livro "A ILHA QUE ATRAVESSOU O MAR", em fase de publicação.
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