Sono sardo.
Uma
decisão pessoal com implicações místicas e familiares, que ocorrem pelo menos
uma vez na vida, essencial para uns e sem nenhum valor para outros. Mas seja o
que for, há coisas na vida, em que o apelo espiritual esgoela mais alto que a
opinião de quaisquer viventes, ainda que estes estejam profundamente ligados à
sua existência. Então seja o que for, vá e faça, não deixe que lhes roube este
momento que é todo seu. E foi assim que alterei meu nome e sobrenome, em
homenagem às descobertas de minhas origens sardas. Meus ancestrais atravessaram
o Atlântico, vindos da ilha da Sardenha, traziam a alcunha de “Cavaleiros Hereditários e Nobres Sardos”,
titulo familiar recebido em 2 de novembro de 1677. Mais que isto, a genética
centenária da ilha grita forte em minhas veias, nada soberbo ou superior, mas
da descendência de simples e rudes pastores de ovelhas, atentos e honrados por
acompanhar seus rebanhos.
E na
crise que assolou toda Europa, Giuseppe Cappai e sua esposa Maria Annica Gessa,
com seis filhos, entre eles meu avô Raffaele, no ano de 1897, atravessou o
Atlântico e veio ter incólume nas terras de Leopoldina, com todos os
desencontros mal enraizados na vasta zona da Mata mineira. Eram empreendedores
e sonhadores como milhares de imigrantes que constituíram a história
brasileira, deixando frutos que melhorariam pelo trabalho este país sul
americano. O estudo da genealogia e busca da cidadania passou a ser a vereda do
reencontro com minhas raízes. Esta busca deu sentido à vida deste
cinquentenário, aponto de torna-se a razão de viver e escrever. É um caminho
solitário, de cunho histórico e espiritual, que sobrevive dos fragmentos de uma
tênue “arqueologia” familiar; algo
muito profundo, pessoal e inarrável. Um sentimento impar, diria original.
-
Sua filha fez o mapa astral e aponta que o nome alterado resgatou coisas
antigas do passado, que precisam ser trabalhadas.
-
Em que aspecto?!
-
Sim pai, nas runas apontou Odin, o Deus nórdico, que aponta que a
ancestralidade precisa ser trabalhada. A consultora do mapa disse que terei que
fazer a “Constelação Familiar” e até consultar uma psicóloga.
-
Seu pai está viajando?! – Pergunta meu pai com 83 anos e
portador do Alzheimer, olhando através de mim, olhar vago e crispantes ao
interrogar, como se todos meus ancestrais o perguntassem.
-
Não meu pai, está aqui perto de mim. – Ao
que concluo em pensamentos, com a voz de todos meus ancestrais, pais nunca saem
das memórias. E chegará o dia que as ideias falharão, porque o tempo se
encarrega de apagar a própria história como sinal de renovação. E vivemos um
tempo que é perda de tempo falar do antigo, porque o jovem não relaciona com os
velhos, exceto o passeio “vintage” para recordar o antigo em museus...
-
Quando mudou o nome, puxou toda energia ruim de seus antepassados, agora
sofremos com sua decisão! – A frase da “patroa” me soou
como um vinagre sobre a boa refeição e o espetacular resultado do vinho
chileno. Curtia estar ali, no almoço de sábado com a família, fazendo valer os
esforços de meus ancestrais na travessia do grande mar. Abandonaram seus
amigos, cultura, sua ilha, suas terras, seus ideais, para estar ali
representado naquela mesa. Mas algo fugiu ao controle, quando os ventos nos
conduziram a outros portos...
Uma explosão ecoou em meu
espírito, tendo como o epicentro o ponto mais profundo de minhas convicções.
Não poderia aceitar e o terremoto foi inevitável...
- Não misture os assuntos, por favor! Não carregue de culpa minhas
escolhas. Não sou responsável pela crise financeira que passa o Brasil, esta
merda de governo petista e muito menos pela falta de alternativas no momento.
Não sou responsável pela corrupção do governo e seus efeitos sobre o orçamento
familiar, mas nada disto se relaciona com minha opção. Orgulho de minhas
raízes, sou descendente de pastores sardos. Nada que possam dizer de minhas
opções, mudará meus caminhos. Tenho certeza que minha história é boa e meus
frutos falam por mim. Não me julgue, porque não estou julgando ninguém. A
história de cada um é o que diz, é de cada um, a ninguém interessa senão a
mim... Mas tenho comigo que, se a ninguém interessa pela história familiar
neste momento, não posso parar, porque nascerá algum dia alguém que irá se
interessar. Não posso tirar dele o acesso a este conhecimento.
A
resposta do “terremoto” expandiu-se com moderada carga semiótica, a partir dos
ecos de seu epicentro, ao que posso chamar apropriadamente de Zona de Divergência. Saiu do Jornalista
para sua esposa Jornalista, ambos formados em 1992 na primeira turma de
Comunicação Social da Univás; repercutiu seus efeitos mais brandos às duas
filhas distantes, que passaram por indiferentes à discussão. Passada a explosão
e o silêncio que decorre de toda atividade sísmica, saio convicto de que o
interesse da história esbarraria naquela máxima “Deixe seus mortos enterrar seus mortos.”, como se tudo estivesse
enterrado e nada mais faria diferença conhecer, difundir ou defender. Sacudi a
poeira, afastei-me da discussão isolada e dos efeitos cataclísmicos desta
genealogia e astrologia mal resolvida e passo a digitar algumas linhas, quando
sinais de uma reconstrução reergueram fragmentos da alma nos escombros...
A
amiga e esposa que me acompanha há 27 anos seguira até o escritório, dando-me
um beijo na face. Vinha em missão de paz, como a Cruz Vermelha a socorrer sobreviventes da catástrofe, com a certeza
que o faria, como sempre fez, confirmando que vale a pena prosseguir a
história. Que apesar das inquietações da história e o isolamento de nossos
dias, a única verdade é estar vivos e bem. Mas uma parte de mim reclama por
revoluções interiores, inquieta por enigmas insolúveis, sacolejada por pequenos
abalos sísmicos diários, segue pela saudade de uma terra que nunca conheci, até
quando não sei. E num lampejo de lucidez de meu pai, com um brilho no olhar e
certo sarcasmo no sorriso moleque, vem à memoria e me diz:
-
Lá vem você de novo, com esta história dos sardos!
Ao que respondo agora,
depois deste episódio: - Per sempre, padre mio, io sono sardo!
_______________________________________________________________ * José Capaz Dutra Cappai, 53 anos, é jornalista, historiador e pesquisador da imigração sarda para o Brasil. Autor do Livro "A ILHA QUE ATRAVESSOU O MAR", em fase de publicação.
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