quinta-feira, 27 de abril de 2017

Crônicas do Sardo Mineiro

Sono sardo.

Uma decisão pessoal com implicações místicas e familiares, que ocorrem pelo menos uma vez na vida, essencial para uns e sem nenhum valor para outros. Mas seja o que for, há coisas na vida, em que o apelo espiritual esgoela mais alto que a opinião de quaisquer viventes, ainda que estes estejam profundamente ligados à sua existência. Então seja o que for, vá e faça, não deixe que lhes roube este momento que é todo seu. E foi assim que alterei meu nome e sobrenome, em homenagem às descobertas de minhas origens sardas. Meus ancestrais atravessaram o Atlântico, vindos da ilha da Sardenha, traziam a alcunha de “Cavaleiros Hereditários e Nobres Sardos”, titulo familiar recebido em 2 de novembro de 1677. Mais que isto, a genética centenária da ilha grita forte em minhas veias, nada soberbo ou superior, mas da descendência de simples e rudes pastores de ovelhas, atentos e honrados por acompanhar seus rebanhos.

E na crise que assolou toda Europa, Giuseppe Cappai e sua esposa Maria Annica Gessa, com seis filhos, entre eles meu avô Raffaele, no ano de 1897, atravessou o Atlântico e veio ter incólume nas terras de Leopoldina, com todos os desencontros mal enraizados na vasta zona da Mata mineira. Eram empreendedores e sonhadores como milhares de imigrantes que constituíram a história brasileira, deixando frutos que melhorariam pelo trabalho este país sul americano. O estudo da genealogia e busca da cidadania passou a ser a vereda do reencontro com minhas raízes. Esta busca deu sentido à vida deste cinquentenário, aponto de torna-se a razão de viver e escrever. É um caminho solitário, de cunho histórico e espiritual, que sobrevive dos fragmentos de uma tênue “arqueologia” familiar; algo muito profundo, pessoal e inarrável. Um sentimento impar, diria original.

- Sua filha fez o mapa astral e aponta que o nome alterado resgatou coisas antigas do passado, que precisam ser trabalhadas.

- Em que aspecto?!

- Sim pai, nas runas apontou Odin, o Deus nórdico, que aponta que a ancestralidade precisa ser trabalhada. A consultora do mapa disse que terei que fazer a “Constelação Familiar” e até consultar uma psicóloga.

- Seu pai está viajando?! – Pergunta meu pai com 83 anos e portador do Alzheimer, olhando através de mim, olhar vago e crispantes ao interrogar, como se todos meus ancestrais o perguntassem.

- Não meu pai, está aqui perto de mim.  – Ao que concluo em pensamentos, com a voz de todos meus ancestrais, pais nunca saem das memórias. E chegará o dia que as ideias falharão, porque o tempo se encarrega de apagar a própria história como sinal de renovação. E vivemos um tempo que é perda de tempo falar do antigo, porque o jovem não relaciona com os velhos, exceto o passeio “vintage” para recordar o antigo em museus...

- Quando mudou o nome, puxou toda energia ruim de seus antepassados, agora sofremos com sua decisão! – A frase da “patroa” me soou como um vinagre sobre a boa refeição e o espetacular resultado do vinho chileno. Curtia estar ali, no almoço de sábado com a família, fazendo valer os esforços de meus ancestrais na travessia do grande mar. Abandonaram seus amigos, cultura, sua ilha, suas terras, seus ideais, para estar ali representado naquela mesa. Mas algo fugiu ao controle, quando os ventos nos conduziram a outros portos...

Uma explosão ecoou em meu espírito, tendo como o epicentro o ponto mais profundo de minhas convicções. Não poderia aceitar e o terremoto foi inevitável...

- Não misture os assuntos, por favor! Não carregue de culpa minhas escolhas. Não sou responsável pela crise financeira que passa o Brasil, esta merda de governo petista e muito menos pela falta de alternativas no momento. Não sou responsável pela corrupção do governo e seus efeitos sobre o orçamento familiar, mas nada disto se relaciona com minha opção. Orgulho de minhas raízes, sou descendente de pastores sardos. Nada que possam dizer de minhas opções, mudará meus caminhos. Tenho certeza que minha história é boa e meus frutos falam por mim. Não me julgue, porque não estou julgando ninguém. A história de cada um é o que diz, é de cada um, a ninguém interessa senão a mim... Mas tenho comigo que, se a ninguém interessa pela história familiar neste momento, não posso parar, porque nascerá algum dia alguém que irá se interessar. Não posso tirar dele o acesso a este conhecimento.

          A resposta do “terremoto” expandiu-se com moderada carga semiótica, a partir dos ecos de seu epicentro, ao que posso chamar apropriadamente de Zona de Divergência. Saiu do Jornalista para sua esposa Jornalista, ambos formados em 1992 na primeira turma de Comunicação Social da Univás; repercutiu seus efeitos mais brandos às duas filhas distantes, que passaram por indiferentes à discussão. Passada a explosão e o silêncio que decorre de toda atividade sísmica, saio convicto de que o interesse da história esbarraria naquela máxima “Deixe seus mortos enterrar seus mortos.”, como se tudo estivesse enterrado e nada mais faria diferença conhecer, difundir ou defender. Sacudi a poeira, afastei-me da discussão isolada e dos efeitos cataclísmicos desta genealogia e astrologia mal resolvida e passo a digitar algumas linhas, quando sinais de uma reconstrução reergueram fragmentos da alma nos escombros...

A amiga e esposa que me acompanha há 27 anos seguira até o escritório, dando-me um beijo na face. Vinha em missão de paz, como a Cruz Vermelha a socorrer sobreviventes da catástrofe, com a certeza que o faria, como sempre fez, confirmando que vale a pena prosseguir a história. Que apesar das inquietações da história e o isolamento de nossos dias, a única verdade é estar vivos e bem. Mas uma parte de mim reclama por revoluções interiores, inquieta por enigmas insolúveis, sacolejada por pequenos abalos sísmicos diários, segue pela saudade de uma terra que nunca conheci, até quando não sei. E num lampejo de lucidez de meu pai, com um brilho no olhar e certo sarcasmo no sorriso moleque, vem à memoria e me diz:

- Lá vem você de novo, com esta história dos sardos!

Ao que respondo agora, depois deste episódio:  - Per sempre, padre mio, io sono sardo!



_______________________________________________________________            José Capaz Dutra Cappai, 53 anos, é jornalista, historiador e pesquisador da imigração sarda para o Brasil. Autor do Livro "A ILHA QUE ATRAVESSOU O MAR", em fase de publicação.

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