A
Sardenha sofre hoje com o envelhecimento progressivo de sua população e também
com o aumento dos casos de demência. Dois
terços da população anciã sarda porta a doença de Alzheimer, doença
degenerativa do sistema nervoso central, que faz com que os idosos fiquem totalmente
dependentes.
O
Alzheimer é acompanhado de sintomas cognitivos (perda de memória, desorientação e confusão) e, muitas vezes, por
sintomas comportamentais (agitação,
agressividade, vagando, insônia, recusa para alimentar, alucinações, delírios,
desinibição sexual). Estes sintomas são as principais causas de estresse
para os familiares e as instituições que cuidam desses idosos.
Minha
família descobriu recentemente os sintomas do Alzheimer no meu pai, com 81
anos. Ele faz parte da primeira geração de sardos no Brasil, esta rara
imigração no Brasil e nas Américas. Como bom sardo que é, tem uma saúde de
ferro (poucas vezes tomou medicamentos) e irá viver bastante. Guarda em seus
relampejos de memória, fragmentos do meu avô imigrante e sua família, Raffaele
Cappai, que também registro aqui como forma de fragmentos. Decerto, as
pinceladas da história retrata bem a difícil vida dos imigrantes sardos nestas
terras distantes.
Leio nas entrelinhas das conversas com meu pai, a transmissão
oral e genética de uma Sardenha distante: as casas, o modo de viver, o gosto
pelo trabalho e um jeito peculiar do sardo. Então, vamos ao que meu pai fala do
passado:
“Meu pai Rafael, falava
pouco. Era enérgico. Eu pouco o entendia, era uma língua estranha. Era muito humano,
gostava de ajudar as pessoas...”
“Meu pai me ensinou
muitas coisas. Fazia questão de me ensinar ofícios, como trabalhar a madeira,
fazer uma cerca e construir uma casa. Gostava de ferramentas e esculpir bois e
carros de bois na madeira. Fazia isto até na casca de abóbora, enquanto
descansava. Dizia para mim, que o saber não ocupa lugar...” – Coisas de pastores sardos.
“Foi dito a mim que de
onde eles vieram (Sardenha), as casas eram todas de pedras. A família tinha
terras lá e muitos pés de uvas. Minha tia, a Maria, que morreu no Asilo de
Leopoldina, não tinha um olho desde pequena, porque furou com o galho da
videira...”
“Meu pai Raffaele fazia
polenta, macetava e colocava no embornal. Amassava com as mãos e comia de vez
em quando com carne de porco e torresmo. Assim passava o dia trabalhando em
silêncio...”
“Doutor, carne de
leitoa é fortificante...” – Encurralados pela invasão, os
sardos se concentraram nas terras do interior da ilha. Muito pouco ia ter no
litoral, onde estavam os invasores, por isto não interessaram pelos frutos do
mar. Historicamente, caçavam javalis e consomem até hoje muito, muito mesmo,
carne de porco. Se falar em leitoa, meu pai é 100% sardo.
“Quando vocês eram
pequenos (meu pai conversando comigo) tinha vontade de ter uma carroça pequena
puxada por um bode. Fiz isto e ficou muito bonito. Também tive um cachorro, mas
ele mordeu seu irmão, quando era pequeno, então o dei para outra pessoa cuidar.”
– Rebanho caprino e cães fazem parte do cotidiano dos
pastores sardos. Herdamos um gosto no passado.
“Esta igreja, aquele
mercado e algumas casas deste vilarejo (São Lourenço, perto de Leopoldina)
foram construídos pelas mãos de meu pai Rafael. Vinha a cavalo da cidade até
aqui. A casa onde nasci está firme até hoje. Os italianos são fogo. Trabalhou
muito...”
“Italiano morre de
pé...” “Vou ficar para apagar a luz, não tenho pressa de morrer”. - Convicção de descendente de imigrantes, para dizer que italiano não dá
o braço a torcer nem para a morte.
“Estou fechando a
dispensa com cadeado, porque estão roubando alimentos. Também as janelas,
porque há bandidos por toda parte”.
- Enxergo
este delírio de meu pai, 81 anos, como uma síndrome do imigrante em terras
estranhas, aflorada pelo Alzheimer.
“Não escute o que ele
está dizendo...” – Palavras do pai, quando um amigo dele chegou
perto de nós, quando eu tinha cerca de 14 anos e disse que meu pai era um
capeta de arteiro.
“Mas que merda, não
posso falar merda...”
- Ao corrigir meu pai pelos palavrões
proferidos aos 80 anos, uma reação bem à italiana.
“O homem vale o que tem
no bolso...” – Palavras de meu pai, quando eu saí
de casa pela primeira vez, para estudar fora. Eu nunca esqueci. Será que isto foi
dito pela família durante a travessia com o vapor?
“Dez
por cento do que ganhamos devemos
guardar e não se esqueça do dízimo da igreja...” – Receita
de sardo religioso e precavido.
“Reze para São Miguel
Arcanjo, ele vai lhe proteger...” –
Meu pai sempre me aconselhou, mas ele
nunca soube, e só recentemente fiquei sabendo, estávamos falando do padroeiro
de Villasalto, a pequena cidade sarda de 1.140 habitantes, de onde veio nossa
família.
Recentemente, li o livro "A ILHA DOS ANCIÃOS", de Ben Hills, que aborda "Os segredos dos centenários da Sardenha", da Editora Prumo. Enxerguei nas linhas deste livro muito da vida dos sardos e até meu pai, compreendi o estilo de vida simples e bem focado de meus ancestrais sardos. O que pode ser corrigido? O que pode ser evitado no sofrimento? Nada, apenas curtir, deixar-se viver, bem ao estilo sardo...
Meu pai, filho de Raffaele Cappai, e seu inseparável salaminho italiano.
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