domingo, 22 de fevereiro de 2015

O Alzheimer na vida dos anciãos sardos.

A Sardenha sofre hoje com o envelhecimento progressivo de sua população e também com o aumento dos casos de demência. Dois terços da população anciã sarda porta a doença de Alzheimer, doença degenerativa do sistema nervoso central, que faz com que os idosos fiquem totalmente dependentes.

O Alzheimer é acompanhado de sintomas cognitivos (perda de memória, desorientação e confusão) e, muitas vezes, por sintomas comportamentais (agitação, agressividade, vagando, insônia, recusa para alimentar, alucinações, delírios, desinibição sexual). Estes sintomas são as principais causas de estresse para os familiares e as instituições que cuidam desses idosos.

Minha família descobriu recentemente os sintomas do Alzheimer no meu pai, com 81 anos. Ele faz parte da primeira geração de sardos no Brasil, esta rara imigração no Brasil e nas Américas. Como bom sardo que é, tem uma saúde de ferro (poucas vezes tomou medicamentos) e irá viver bastante. Guarda em seus relampejos de memória, fragmentos do meu avô imigrante e sua família, Raffaele Cappai, que também registro aqui como forma de fragmentos. Decerto, as pinceladas da história retrata bem a difícil vida dos imigrantes sardos nestas terras distantes. 

Leio nas entrelinhas das conversas com meu pai, a transmissão oral e genética de uma Sardenha distante: as casas, o modo de viver, o gosto pelo trabalho e um jeito peculiar do sardo. Então, vamos ao que meu pai fala do passado:

“Meu pai Rafael, falava pouco. Era enérgico. Eu pouco o entendia, era uma língua estranha. Era muito humano, gostava de ajudar as pessoas...”

“Meu pai me ensinou muitas coisas. Fazia questão de me ensinar ofícios, como trabalhar a madeira, fazer uma cerca e construir uma casa. Gostava de ferramentas e esculpir bois e carros de bois na madeira. Fazia isto até na casca de abóbora, enquanto descansava. Dizia para mim, que o saber não ocupa lugar...”Coisas de pastores sardos.

“Foi dito a mim que de onde eles vieram (Sardenha), as casas eram todas de pedras. A família tinha terras lá e muitos pés de uvas. Minha tia, a Maria, que morreu no Asilo de Leopoldina, não tinha um olho desde pequena, porque furou com o galho da videira...”

“Meu pai Raffaele fazia polenta, macetava e colocava no embornal. Amassava com as mãos e comia de vez em quando com carne de porco e torresmo. Assim passava o dia trabalhando em silêncio...”

“Doutor, carne de leitoa é fortificante...” – Encurralados pela invasão, os sardos se concentraram nas terras do interior da ilha. Muito pouco ia ter no litoral, onde estavam os invasores, por isto não interessaram pelos frutos do mar. Historicamente, caçavam javalis e consomem até hoje muito, muito mesmo, carne de porco. Se falar em leitoa, meu pai é 100% sardo.

“Quando vocês eram pequenos (meu pai conversando comigo) tinha vontade de ter uma carroça pequena puxada por um bode. Fiz isto e ficou muito bonito. Também tive um cachorro, mas ele mordeu seu irmão, quando era pequeno, então o dei para outra pessoa cuidar.” – Rebanho caprino e cães fazem parte do cotidiano dos pastores sardos. Herdamos um gosto no passado.

“Esta igreja, aquele mercado e algumas casas deste vilarejo (São Lourenço, perto de Leopoldina) foram construídos pelas mãos de meu pai Rafael. Vinha a cavalo da cidade até aqui. A casa onde nasci está firme até hoje. Os italianos são fogo. Trabalhou muito...”

“Italiano morre de pé...” “Vou ficar para apagar a luz, não tenho pressa de morrer”. - Convicção de descendente de imigrantes, para dizer que italiano não dá o braço a torcer nem para a morte.

“Estou fechando a dispensa com cadeado, porque estão roubando alimentos. Também as janelas, porque há bandidos por toda parte”.  - Enxergo este delírio de meu pai, 81 anos, como uma síndrome do imigrante em terras estranhas, aflorada pelo Alzheimer.

“Não escute o que ele está dizendo...”Palavras do pai, quando um amigo dele chegou perto de nós, quando eu tinha cerca de 14 anos e disse que meu pai era um capeta de arteiro.

“Mas que merda, não posso falar merda...” - Ao corrigir meu pai pelos palavrões proferidos aos 80 anos, uma reação bem à italiana.

“O homem vale o que tem no bolso...” – Palavras de meu pai, quando eu saí de casa pela primeira vez, para estudar fora. Eu nunca esqueci. Será que isto foi dito pela família durante a travessia com o vapor?

Dez por cento do que ganhamos devemos guardar e não se esqueça do dízimo da igreja...” Receita de sardo religioso e precavido.


“Reze para São Miguel Arcanjo, ele vai lhe proteger...” Meu pai sempre me aconselhou, mas ele nunca soube, e só recentemente fiquei sabendo, estávamos falando do padroeiro de Villasalto, a pequena cidade sarda de 1.140 habitantes, de onde veio nossa família.

Recentemente, li o livro "A ILHA DOS ANCIÃOS", de Ben Hills, que aborda "Os segredos dos centenários da Sardenha", da Editora Prumo. Enxerguei nas linhas deste livro muito da vida dos sardos e até meu pai, compreendi o estilo de vida simples e bem focado de meus ancestrais sardos. O que pode ser corrigido? O que pode ser evitado no sofrimento? Nada, apenas curtir, deixar-se viver, bem ao estilo sardo...

Meu pai, filho de Raffaele Cappai, e seu inseparável salaminho italiano.

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